3 de abr. de 2013

A pergunta de Igor de Maria Lúcia Martins


A pergunta de Igor                       
                                                            Maria Lúcia Martins
                                                           
      Eu queria colocar uma rosa, uma simples rosa vermelha entre as mãos geladas pela morte da jovem guerrilheira do Araguaia, Maria Lúcia Petit. – eis um dos inúmeros momentos em que a emoção me impediu de continuar lendo Maurício Grabois: meu pai*. Livro em que Vitcória Grabois, sua autora, quer narrando a saga de sua família – desde os avós, russos,  atravessando continentes, até chegar ao Brasil – quer documentando a vida política e revolucionária de seu pai, não abriu mão da ternura. Maurício Grabois, em 2012, faria 100 anos, e recebeu consistentes e belas homenagens. Arvoro-me dizer, entretanto, que esse livro representa a homenagem maior. 

      Nele Victória enfocou dois ângulos de uma mesma vida – o da história política de inusitada coragem, e, o do homem companheiro de Alzira, mãe de seus dois filhos e mulher solidária a cada luta, perigo ou conquista – com o mesmo afeto e admiração: O ideário de meu pai ficou como semente no solo do Araguaia. Seus sonhos despertaram nas gerações de netos e bisnetos mostrando que sua luta não foi em vão. Semente e sonho: sem eles, a vida não se sustenta.   
      Enfim, somente numa segunda leitura, pude apreender inúmeros fatos ainda desconhecidos por mim. Desconhecimento que, por muitos anos, obedecia ao silêncio de pedra com que a ditadura nos paralisava. E tudo isso, não só fala da amargura sob a qual vivíamos após o golpe de 1964, como nos lembra que, podados de toda liberdade política e cidadã, nosso próprio pensar rareava. Criar – fosse no plano artístico, cultural, científico, educativo – inúmeras vezes foi prova de “subversão” para cruéis espancamentos, por vezes, irreversíveis. Para além da perda de todos os direitos humanos, o medo e o terror nos sombreava a capacidade de sonhar. Se, por (corriqueira) averiguação, sofrêramos bárbara tortura, soltos, éramos “lembrados” de que jamais estivemos presos! Era de rir... se nos atrevêssemos. Durante o curso de Filosofia (UERJ, 72/76),  quanta síntese sobre Platão, Hegel etc (Marx, nunca...), mas nem meia hipótese sobre o sumiço de alguém, e, muito menos, porque isso acontecia. Estranho silêncio: só em minha família, entre seis pessoas presas (de 1971 a 74), quatro foram torturados com as mais variadas modalidades de violência.
      Assim, se por um lado, publicações, como Maurício Grabois: meu pai, sejam uma forte luz sobre os crimes de Estado – por outro, seus autores ainda transitam livres, a pleno sol! Sim, eles “ainda” nos devem vidas: perguntar Onde estão nossos mortos e desaparecidos?  (foto/cartaz de 45 guerrilheiros), e ler o consistente capítulo PELO TOTAL ESCLARECIMENTO (p.133) desse livro, torna possível comprovar, a partir do muito que já foi feito, o quanto ainda há por fazer, a exemplo da trajetória do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, do qual Victória Grabois é a presidente atual.  
     As lutas por um Brasil verdadeiramente democrático, à revelia dos defensores de uma pseudo História, incluem a travessia de Maurício Grabois, desde a sua militância comunista que o torna deputado da Assembléia Constituinte em 1946, a comandante da Guerrilha do Araguaia, onde foi morto em 25 de dezembro de 1973. E, se, a exemplo de Duas concepções, duas orientações políticas (p.150), texto de escrita límpida e lúcida, pode-se constatar o pensador Maurício, a ela, acrescente-se a voz de Criméia Alice (companheira de seu filho, André Grabois): ele era uma pessoa muito inteligente, crítico e dono de um fino humor, sempre muito brincalhão.(...) O que mais me impressionava nele é que não aceitava as coisas, as verdades de forma impensada e sempre procurava nos preparar contra a obediência cega.
     Assim, do regional ao universal e vice-versa, em eterna espiral ou vida, Somos condenados à liberdade (Sartre). E, com ela, a poesia (a verdade) que sempre há de estar no mundo com o mundo. Nesse sentido, a poesia também é um sopro de um instante da História. Assim, Victória Grabois, não só pela valiosa herança ideológica e afetiva que recebeu de seu pai e de sua mãe (e de seu companheiro, Gilberto Olimpio Maria, e de seu irmão André Grabois, também eles, mortos na Guerrilha do Araguaia) como pela sua própria militância na defesa dos Direitos Humanos, sob sua sensibilidade Mulher, não só no (difícil) agregar político, como na delicada construção afetiva familiar.
     Sem ter pretendido um resumo, concluo, com a interrogação emblemática, convenhamos, de Igor Grabois, neto de Maurício (p.36), em seu depoimento: (...) Em toda a minha vida houve uma singela pergunta: você é o quê do Maurício?  
     Na verdade, de ler e pensar muito sobre essa pergunta, me veio vindo o desejo de escrever algo sobre o livro de Victória Grabois; ou seja, a pergunta do neto (título) tornou-se uma espécie de punctum (empréstimo que faço ao precioso livro A Câmara Clara de Roland Barthes), “isso” para o quê eu não conseguia a palavra e, sim, uma imagem que me olhava e eu via (vejo-a): sobre densa névoa, o menino Igor (vejo-o de costas) caminha com dificuldade, e, segurando pela haste, um óculos grande de aro preto, tenta alcançar o homem Igor (ou Maurício?) que se distancia do pequeno cada vez mais, rumo ao alto da névoa, onde imensa árvore verde parece chamá-lo...
     Claro que quem deu cor e forma a esta imagem foi o texto de Igor: Na última vez que vi Maurício eu devia ter cinco anos. Era o avô querido, que aparecia em minha casa de tempos em tempos. Mal sabia que as suas ausências eram passadas nas selvas do Araguaia na preparação da luta armada. Esse meu último encontro com Maurício aconteceu em uma casa de cômodos – como se falava antigamente dos cortiços – no Jabaquara (...), em um dos vários aparelhos em que a família residiu.
    Passados mais de quarenta anos, a imagem de Maurício ainda é nítida, apesar das traições da memória. Desde então, o avô querido se transformou em uma das mais importantes figuras históricas do movimento comunista no país, o comandante das forças guerrilheiras do Araguaia, exemplo de militante e dirigente quase lendário.
   Em toda a minha vida houve uma singela pergunta: você é o quê do Maurício? (...)

       Rio de Janeiro, 28 de março de 2013.
 Maria Lúcia Martins é psicanalista, escritora e poeta.  

*Maurício Grabois: meu pai
 Victória Lavínia Grabois
 Hexis editora - Rio de Janeiro / 2012
169 páginas 



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